sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Sandálias são sinônimo de humildade?

Fonte: https://montieljuly.wordpress.com/2014/07/16/prontos-para-avancar/


Quando penso em sandálias lembro-me imediatamente de algumas figuras: os hebreus da antiguidade, Abraão, Moisés, os soldados romanos, Jesus de Nazaré e Francisco de Assis. 


A função das sandálias é calçar os homens, ajudando-os a caminhar e peregrinar sem ferir os pés. Mas se por um lado elas conferem àquele que as usa certo ar pomposo e dignidade, por outro lado elas são símbolos de humildade. 



Humildade, pois com os pés tão próximos à terra (humus, em latim), lembramo-nos que o pó levantado quando pisamos o chão não é muito diferente do pó que forma nosso próprio corpo. Isto porque a maioria dos elementos que compõem a terra que pisamos compõem também o nosso corpo. Então o pó batido das sandálias suja e se mistura com nosso corpo. Somos pó e ao pó tornaremos um dia.



Devemos então levar em conta que as sandálias carregam em si esta dupla simbologia: (i) estar vestido ao mesmo tempo em que se está despido, em humildade, (ii) apresentar-se dignamente ao mesmo tempo em que apresentamo-nos humildemente. 



Todavia, se as sandálias simbolizam ao mesmo tempo dignidade e humildade, aquele que descalça totalmente os pés e toca com eles a própria terra, aproxima-se mais da humildade. "Desce", ou melhor sobe um degrau em humildade. 



Todas as vezes que o texto bíblico buscou alegorias adequadas à humildade ele lançou mão dos pés descalços: (i) Javé ordenou que Moisés retirasse as sandálias, pois estava na presença Daquele que é santo três vezes santo. (ii) João Batista ao ter encontrado seu primo Jesus, disse-lhe que não era digno de tirar-lhe as sandálias.



Entretanto as sandálias também foram utilizadas como alegoria para advertir contra o abuso do pobre.. Foi assim que o profeta Amós acusou os comerciantes de sua época por venderem gente desprotegida e inocente pelo preço de sandálias.



Mas tomemos sempre cuidado com o exterior e as aparências. Afinal, nem tudo o que parece é; e não é o hábito que faz o monge. Portanto a humildade, que é uma das principais virtudes na vida cristã deve ser buscada sempre interiormente e jamais exteriormente. Para que não caiamos na vaidade da simplicidade ou na vaidade da humildade.



Finalmente vale dizer que, se a soberba é a raiz de todos os males, a humildade é a raiz de todos os bens. Da humildade provém um coração gentil e generoso. Pronto a perdoar, a oferecer a outra face, a ser paciente e a olhar a todos com benevolência e gratidão.



sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Você iria mal vestido a uma festa?

Fonte: http://www.clicoufestas.com.br/blog/o-traje-black-tie-muito-alem-do-longo-e-do-smoking



Sören Kierkegaard (1813-1855) foi um filósofo dinamarquês, filho de Michael Pedersen Kierkegaard, um pastor luterano. Sören Kierkegaard nunca foi ordenado pastor tal como seu pai queria. Ele preferiu dedicar toda a sua vida e obra a refletir sobre o que significava ser cristão. Criticou de maneira pungente a sociedade e a igreja de seu tempo. 

Em sua época, qualquer pessoa nascida em Copenhague (Dinamarca) era considerada cristã simplesmente pelo fato de ter nascido num país aonde as pessoas professavam-se cristãs. Kierkegaard dirá então, cheio de ironia, de que assim como Sócrates era um ignorante em meio a muitos sábios, ele não é cristão em meio a tantos cristãos. Na verdade Kierkegaard diz isto por meio de Johannes de Silentio (João do Silêncio, um de seus pseudônimos). E ele não é cristão porque segundo Kierkegaard ninguém "é" cristão, mas todos precisam "tornar-se" cristãos. 

Tornar-se cristão é tarefa para uma vida inteira. Não basta nascer numa sociedade cristã, num berço cristão ou no seio da cristandade; é preciso tornar-se cristão. Ser cristão é pois, uma questão existencial e de escolha diária que requer muito esforço, disciplina e repetição. Tornar-se cristão é repetir todos os dias a escolha por Cristo e pelos valores do Reino.

E só se torna cristão o indivíduo capaz de realizar um duplo movimento:
(i) primeiro ele renuncia ao mundo e renuncia a racionalidade, dando o salto da fé, – um salto no escuro –
(ii) para depois e paradoxalmente, abraçar novamente o mundo e auxiliar Deus em seu processo de restauração e redenção de um mundo fraturado pelo mal e pelo pecado. Um mundo angustiado (posteriormente poderemos falar sobre a diferença entre as pessoas que sentem "angústia do bem" e aquelas que sentem "angústia do mal" – conceitos importantíssimos no pensamento kierkegaardiano.

Abraão teria sido o homem a realizar este duplo movimento que culminou por dar-lhe o título de pai da fé. Pois para obedecer a ordem aparentemente absurda de sacrificar seu próprio filho Isaque, renunciou a razão, mas em chegando ao cume do monte Moriá e ter o novilho preparado para o sacrifício, desceu com Isaque nos braços e tornou-se herói da fé.

Abraão fez o duplo movimento: renunciou ao mundo e à racionalidade, dando o salto da fé, e paradoxalmente, ao receber Isaque de volta em seus braços, alcançou sim a fé dos heróis da fé, sem contudo perder a razão outrora abdicada; antes, re-apropriando-se da razão sob uma forma mais elaborada e refinada. Uma razão que tem em si a fé e uma fé que não extingue de todo a razão. Numa bela e harmoniosa tensão dialética. 

Fé, portanto, não é algo comprado na quitanda. Não é algo que encontramos por aí como quando ouvimos alguém dizer: tenha fé! Fé é esse duplo movimento de renuncia e re-apropriação de si mesmo, que só os heróis da fé descritos em Hebreus 11 conseguiram fazer. Ou aqueles que seguiram os seus passos, como Eliseu que ao tomar a capa de Elias esteve pronto para sucedê-lo. 

Esforcemo-nos pois, por tomar o caminho árduo dos heróis da fé e caminharmos à semelhança de Abraão que foi capaz de fazer o duplo movimento, realinhando assim razão e fé numa harmoniosa tensão dialética. Nem só razão que leva ao ceticismo, tampouco a fé solitária que leva ao fanatismo.

E que possamos ser cristãos não porque nascemos numa família ou país majoritariamente cristão, mas porque fazemos uma escolha diária de rumar e nos vestir com as roupas de Deus: compaixão, bondade, humildade, autocontrole, disciplina, moderação, satisfeitos com o segundo lugar e rápidos em perdoar as ofensas. Porque nós somos as roupas que Deus veste e se nos portarmos de maneira rude, seria como se Deus estivesse vestindo trapos ao invés de roupas finas. Porque nós somos ou deveríamos ser, a roupa que Deus veste.

Para saber mais:
Título: Temor e Tremor. 
Autor: Sören Kierkegaard.
Editora: Ediouro.

Bíblia A Mensagem, Eugene H. Peterson.
Carta de Paulo aos Colossenses, capítulo 3, versos 12 ao 17.

domingo, 7 de outubro de 2018

Igreja ou Estado – a quem devemos obedecer?

Fonte: http://contatoanimal.blogspot.com/2012/03/etica-e-dogma-sergio-greif.html

Há dois trechos no Evangelho de Mateus onde Jesus trata da questão dos impostos e do tributo. O primeiro aparece no capítulo 17 e o segundo no capítulo 22. Diz o texto que logo que chegaram em Cafarnaum, alguns homens aproximaram-se de Pedro e perguntaram se Jesus pagava os impostos devidos. Ao chegar em casa, porém, Jesus antecipou-se perguntando a Pedro:

 –  O que você acha Simão? Os reis recebem os impostos de seus próprios filhos ou de estranhos?
–  De estranhos é óbvio.
–  Logo, os filhos estão isentos. Mas para que não haja escândalo ou maledicência, vamos pagá-lo. Vá pescar e acontecerá que o primeiro peixe que subir trará um dinheiro em sua boca. Pegue-o e pague o imposto por mim e por você.
(Mateus, 17: 24-27, tradução livre).

O Evangelho também conta de que alguns fariseus e herodianos aproximaram-se de Jesus para experimentá-lo. Então perguntaram-lhe sobre a questão dos impostos, dizendo:

– Devemos pagar o imposto a César? 
– De quem é o rosto que aparece na moeda? – disse Jesus.
– É o rosto de César – responderam.
– Portanto deem a César o que pertence a César e a Deus o que pertence a Deus.
E sem saber mais o que dizer, foram embora.
(Mateus, 22: 15-21, tradução livre).

O que poderíamos retirar de ensino destas duas notórias passagens do Evangelho de Mateus? O que ela tem a dizer-nos ou como pode clarear nossa visão e compreensão acerca da relação e da dicotomia Igreja-Estado?

Tenho em conta que ao Jesus responder asperamente tal pergunta, estava claramente dividindo aquilo que é dos homens e da terra daquilo que é dos Céus e de Deus. Tenho em conta que Jesus estava separando de modo radical o poder temporal do poder que vem do Eterno e, que é eterno.

Aqui se dá – ou deveria se dar – a clara e definitiva separação entre Estado e Igreja. O Estado é o mesmo que César – imperador romano e a Igreja representa o poder atemporal que advém de Deus. Porém, como é comum vermos também a Igreja imiscuída em assuntos mundanos e por vezes não lá muito dignos, precisamos parar aqui e determo-nos no que entendemos por Igreja.

A igreja com "i" minúsculo seria a instituição igreja, que possui residência fixa, CNPJ e contas a pagar. Então a igreja pode até estar separada, mas é sujeita ao Estado, pois paga-lhe o tributo devido todo fim de mês ou do ano. 

Já a Igreja com "I" maiúsculo é o corpo místico de Cristo. O corpo invisível de Cristo, que será arrebatado com ele no dia da ressurreição. Corpo composto por todos aqueles que suportaram a grande tribulação e não negaram o Cordeiro, nem mancharam suas vestes com o pecado.

Deste modo, vemos que quando Jesus diz para dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, ele separa aquilo que é secular do que é eterno; o profano do sagrado; o Estado da Igreja (não a igreja temporal apenas, mas a Igreja invisível e eterna, a Igreja com "I" maiúsculo).

Portanto devemos agir com justiça e justeza. Cumprindo nossas obrigações para com o Estado enquanto cidadãos brasileiros, e também com Deus, enquanto cidadãos dos Céus. Tendo em conta o exemplo de Jesus que, enquanto esteve conosco, cumpriu suas obrigações civis e pagou o imposto devido à César. 

Agostinho nos ensinou de que nós somos cidadãos de duas pátrias: enquanto aqui vivemos, estamos na cidade dos homens e devemos obedecer-lhe as leis, mas mesmo aqui tenhamos sempre em vista que almejamos viver na cidade de Deus que é nossa verdadeira pátria e lar. Contudo, mesmo que o Estado ao qual estejamos sujeitos seja um Estado ateu, islâmico, laico ou de qualquer outra ordem, nós enquanto cristãos, devemos respeitar-lhe as leis (a menos que tal lei entre em direta e franca colisão com a lei Eterna). Em caso de franca colisão entre as leis devemos sempre optar por obedecer ao Senhor. Seja a igreja unida ou separada do Estado, obedeçamos sempre ambas as legislações, considerando sempre as do Estado sujeitas às da Igreja, as do Eterno. 

Um exemplo de cristãos que obedeceram a Deus em detrimento do Estado encontra-se nos primeiros cristãos, os quais foram lançados aos leões mas não negaram sua fé. Outro exemplo pode ser encontrado nos cristãos que preferiram ser perseguidos e até presos a ter que pegar em armas para promover a guerra. 

Tendo como alvo nossa verdadeira Pátria, devemos pois nos despir do egoísmo que é a característica principal da Cidade dos Homens e caminhar rumo ao altruísmo, à devoção ao Senhor e ao amor sacrificial – que é a característica reinante na Cidade de Deus. Porque aqui somos meros forasteiros e peregrinos, nossa pátria está no Céu. Como já cantávamos no culto de domingo de manhã: "Sou neste mundo um peregrino/ Já me fizeste cidadão dos Céus".


Para saber mais:

Título: A Cidade de Deus.
Autor: Santo Agostinho. 
Editora: Vozes de Bolso.